terça-feira, 23 de março de 2010

Eu, etiqueta


"Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome... estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camisola, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto q ue nunca experimentei mas são comunicados a meus pés. Meu ténis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade...
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem — anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada...

Estou, estou na moda! É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registadas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso dos outros, tão mim-mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes da sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio, ora vulgar, ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente). E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação.

Não sou — vê lá — anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para venderem bares, festas, praias, pérgulas, piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam, e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa resumia uma estética?

Hoje sou costurado, sou tecido, sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrina me tiram, recolocam, objecto pulsante mas objecto que se oferece como signo de outroso bjectos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome rectifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente."

Carlos Drummond de Andrade, 1984.

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